Na hora, todos pensaram que havia sido ele. Eu não. Tinha certeza que não.
Até então, éramos apenas nós dois na escola. O tesoureiro estava de cama já há duas semanas, e Miguel havia assumido temporariamente as finanças. Em particular, a organização da rifa.
O prêmio seria uma cesta de livros com clássicos da literatura mundial e romances do modernismo brasileiro. Cada integrante ou apoiador do grêmio recebeu um bloco de rifas. Quem vendesse mais ganharia uma seleção de contos de Machado de Assis.
Tudo transcorria como o previsto. Ao final do dia, todo o apurado era depositado na caixinha. Contudo, faltando três dias para o sorteio, um incidente. Nenhum tilintar de moedas ou notas se amontoando. Só o som seco da madeira do cofrinho.
Todos se entreolharam. Logo aquele suspense se personificou em Miguel, o único que possuía a chave do cadeado. Ali, pude ter certeza de que realmente tem gente que não gosta da gente. “Por que será?”, pensei. Miguel nem se abalou.
Alguns dos presentes fingiram que nada havia acontecido e saíram de fininho. Não queriam perder tempo para soltar a bomba que, pela situação, cairia sobre nós.
Saímos também rapidamente. Os outros ficaram se perguntando quem teria roubado o dinheiro e como teriam feito para tirá-lo sem mexer no cadeado, que permanecera intacto.
Miguel me arrastava para um canto e, enquanto isso, eu raciocinava: “pelo menos todos os livros foram conseguidos com doações, portanto, mesmo que o dinheiro não apareça, não ficará dívida”.
Expus-lhe meu pensamento. Miguel me interrompeu e, um tanto irritado, explicou-me que não se tratava apenas daquilo resultar ou não em dívida . O principal era a continuidade do trabalho que estávamos construindo. O trabalho individual com cada um dos mais dispostos que se envolveram com o grêmio. E o trabalho mais amplo, de agitação e conscientização, com o conjunto dos estudantes.
Aí foi a minha vez de interrompê-lo. Questionei por que ele não havia se defendido logo no momento da infeliz descoberta. Retrucou-me que não havia nada de que se defender. Franziu a testa e, olhando nos meus olhos, fez sinal para saber se estava de acordo. Respondi, com outro sinal, que sim.
— Eles saíram de lá para planejar como nos difamarão. E nós para planejarmos como vamos resolver isto. É perda de tempo nos preocuparmos, agora, em saber quem levou o dinheiro. Não há nenhuma evidência e, de qualquer maneira, irão me incriminar. Temos é que restituir o recurso ao cofre.
Mais uma vez estava certo. Traçamos duas ações e partimos.
O boato se espalhou velozmente e ficou ainda mais forte por que não aparecemos no dia seguinte. A direção da escola já procurava por Miguel.
Reunimos, numa plenária, os três núcleos da cidade. Destacamos oito pessoas, formando duas equipes. Com o dia inteiro de pedágio arrecadamos quase dois terços do valor.
Uma semana depois, encontrei, por acaso, um dos motoristas que havia contribuído no sinal. Ele me perguntou se a viagem havia sido cancelada. Respondi, meio encabulado, que não: “— Eu é que adoeci e, por isso, não pude participar do congresso”.
Faltava um dia para o sorteio. A rifa estava suspensa. A escola em polvorosa. Aparecemos e parecia que seríamos apedrejados.
Tratamos logo de reunir a diretoria do grêmio. Miguel pôs o recurso do pedágio em cima da mesa e explicou como o conseguimos, sem dar brecha para qualquer questionamento. Finalizou dizendo que passaríamos em todas as classes confirmando o sorteio para o dia seguinte e garantindo que a diretoria do grêmio já estava de posse do dinheiro da rifa.
Assim o fizemos. Enquanto ele se dirigia à turma, eu abordava o professor fora da sala, vendendo a rifa a um preço majorado, argumentando que era uma contribuição para a luta.
Na hora marcada, o sorteio foi realizado. Miguel apresentou publicamente a prestação de contas e o cofrinho com o dinheiro.
O prêmio por vender mais rifas ficou comigo, o que já estava nas nossas contas. Fomos, então, ao sebo de um conhecido, vendemos o livro e completamos o restinho que faltava para saldar o caixa.
Com o tempo, as coisas mudaram. Depois da gestão de Miguel, cheguei, também, a presidente do grêmio, e ainda estamos por lá.
Agora, já concluí a universidade, e Miguel está bem longe daqui, fazendo nosso trabalho em algum lugar que não conheço com precisão.
Poucos de hoje o conheceram. Mas àqueles que me perguntam onde está esse Miguel de que tanto falo, respondo, olhando para mim e para os outros tantos companheiros:
— Aqui está o camarada Miguel.
Rafael Freire
30/11/05
Um comentário:
Mas, afinal de contas, esse Miguel é o não culpado?
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