3.11.06

A Luz Amarela

Subíamos o barranco. O cheiro de terra molhada era forte. O mato úmido roçava os joelhos por entre o caminho. A lama gelada cobria cada passada. As copas das árvores se abraçavam. A escuridão fazia-se senhora. E meu guia, muito mais afeito àquela caminhada, seguia rápido, quase me deixando para trás.

Concluída a subida, era a hora da descida. No primeiro passo meu pé escorregou. Fez-me recobrar meu medo de altura. Continuamos. Neste outro lado o solo estava seco e bastante esburacado, formando uma espécie de escadaria.

Sem maiores aventuras, chegamos à pista. O carro que passou rasgando a noite logo se distanciou, deixando um rastro de solidão.

Cruzamos a pista, depois o campinho de futebol. Aquelas traves de pau envergado não agüentariam uma bolada mais forte. Lamentei o quanto tempo não jogava uma partida.

Ventava, e os coqueiros pareciam nos abanar, espantando o calor. A lua agora clareava, mas pouco podia ainda se ver.

Alcançamos a rua principal. A luz amarela dos postes restituiu-me a noção das coisas. Estava novamente independente do meu guia. Veio-me uma pontinha de felicidade. Nada melhor do que ser dono dos próprios atos! Enxergar o caminho que se trilha.

Pode não parecer, mas vínhamos conversando. A conjuntura do país era tema certo em qualquer bate-papo. A boa afinação com meu interlocutor também ajudou a me reanimar.

Pela rua, casinhas simples. Gente simples nas calçadas. Provavelmente falando das coisas simples do lugar, intercalando comentários sobre a crise política.

Todos olhavam para nós. Perguntavam-se quem seria aquele rapaz nunca antes visto. Muitos deduziram. Aos cumprimentos ao meu companheiro, respondíamos com um cordial “boa noite!”, seguido do convite ao evento.

Fiquei apenas na vontade de interagir mais com aquela gente. Nosso tempo estava apertado e era preciso chegar antes do horário para deixar tudo pronto.

No salão da associação, mais gente simples. Poucos ainda. O assunto era o Congresso Nacional. O tom era de revolta. Dos presentes, só um desdenhava, argumentando que isso sempre foi assim, “do vereador ao presidente!”.

Uma mocinha interveio:

— É por isso que nós só temos a nós mesmos.

Sua tia velha concordou, balançando a cabeça. O homem torceu a boca, cético.

Esbocei um sorriso de suave contentamento. Havia naquela conversa muita sinceridade. Verdades brutas que precisavam ser lapidadas. Mas já verdades. Eu apenas observava.

O salão encheu. Após ser apresentado como palestrante pelo meu anfitrião, um suspense gostoso envolveu a todos. Pairava naquelas cabeças o que poderia eu, um típico jovem da cidade, ensinar-lhes de novo.

Dispensei o microfone. Não por cena, mas porque o som estava péssimo. Juntei minhas anotações e me ergui.

Desde que sentara à mesa, tentava olhar para cada um ali presente, mas eram muitos. Havia todos os tipos: belas moças; magros rapazes de barba por fazer; cabelos brancos; homens cujas faces eram a pura expressão do trabalho duro; crianças em idade de traquinagem; crianças em idade de colo com suas mães maltratadas. E, no meio deles, eu.

Fiz um último esforço de concentração e comecei. Quando acabei, foram muitos os aplausos. Nosso representante local também foi muito aplaudido. Fiquei orgulhoso.

Findada a atividade, varremos o salão com a ajuda de alguns voluntários. Refiz satisfeito o caminho de volta.

Ali, pude perceber como são boas as coisas simples. Ali, tenho certeza, eu fui o guia.

Ali, aquela gente sofrida também alcançara a rua principal, e, pela primeira vez, a luz amarela dos postes chegou-lhes aos olhos que antes nada viam.
Rafael Freire
02/12/05

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