2.11.07

“Viagem” - trecho do cap. 24

Visita a uma casa onde repousam trabalhadores da indústria do chá. Passam aqui as férias, um mês por ano. A permanência custa 700 rublos, mas eles apenas pagam 30%; o resto é pago pelo sindicato. [...]

Nas salas vastas, jogadores, entretidos nos lances do xadrez, nem pareciam dar conta da nossa presença. Admirava-me não distinguir neles nenhum dos sinais entre nós perceptíveis na classe obreira: gestos esquivos, olhares suspeitosos, maneiras bovinas, indícios de pensamento lerdo. Parecem desconfiar das criaturas bem vestidas e educadas. Certo crítico, anos trás, me insinuara utilizar num romance os camponeses do Nordeste. Apesar de sertanejo, achava-me incapaz de fazer isso, e antes de viver com esses homens na cadeia, dormindo nas esteiras podres e dividindo fraternalmente os percevejos, não me arriscaria a aceitar o conselho. Aqui se atenuaram as diferenças, afinal desapareceram; os indivíduos que jogam xadrez são aparentemente iguais a nós, nãoo têm motivo para julgar-nos inimigos. Ainda estamos longe deles, é claro: somos estrangeiros – e, embora vivamos do nosso trabalho, fomos criados na reverência aos tipos hábeis que vivem do trabalho dos outros. E admiramos haverem-se apagado aqui as divergências. Ocorrera-me, passeando em Moscou, fazer uma pergunta: – “Mme. Nikolskaya, essa moça aí perto é empregada em oficina ou em repartição pública?”. A Sra. Nikolskaya examinara a mulher por todos os lados e concluíra: – “É impossível saber. Não achamos distinção”. Moscovita, a Sra. Nikolskaya se revelara incapaz de satisfazer-me a curiosidade. Um ofício não é superior a outro – e os homens tendem a uniformizar-se. Essa idéia choca o nosso individualismo pequeno-burguês: achamos vantagem nas discrepâncias, receamos tornarmo-nos rebanho. E nem vemos que somos um rebanho heterogêneo, medíocre, dócil ao proprietário. Queremos guardar o privilégio imbecil de não nos assemelharmos ao vizinho. Enfraquecendo-nos, julgamos-nos fortes. Realmente, somos bestas.

Graciliano Ramos, 09 de agosto de 1952

(Cidade de Gagra – Geórgia, às margens do Mar Negro, na antiga URSS)